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Reflexões Dança por Eliana Caminada

Há alguns meses do lançamento, pela Sprint, de meu livro sobre História da dança, comecei a refletir sobre o indeditismo de um trabalho de pesquisa, absolutamente teórico, ser apresentado ao público, por uma bailarina.

Sim, porque é lugar comum entre nós mesmo profissionais dessa arte tão bela e universal quanto ignorada, sobretudo daqueles que vêm de uma formação específica acadêmica, a lamentável afirmação de que “bailarino não fala, dança”.

Embutida nesse preconceito, cultivado pela própria categoria e estimulado pelo processo histórico do nascimento do ballet, na sua origem uma arte elitista e diletante, insere-se a idéia de que esse artista também não deve pensar ou desenvolver reflexões sobre qualquer assunto que não se enquadre no conhecimento da técnica que precisa dominar corporalmente. A dança, defendem-se, exige muito mais do que as atividades normais de um ser humano: requer o preparo atlético do ginasta e a sensibilidade do artista; a disponibilidade do repórter e a criatividade do comunicador; o tempo de estudo do técnico altamente especializado e a espontaneidade do autodidata.

Certamente é verdade, mas não é menos verdade que não basta. Infelizmente aceitemos ou não, apesar de a dança comunicar aquilo que transcende as palavras, os intelectuais e os poderosos não a compreendem; principalmente na sua forma cênica. Desconhecem de fato, completamente, uma manifestação artística sobre a qual não possuem nenhum domínio, e talvez, por isso mesmo, tratam-na, então, como algo meio excêntrico, uma espécie de capricho ou habilidade de seres pouco dotados para o exercício do saber considerado formal, institucional, normativa.

Evidente que tal desconhecimento acentua o problema e dá margem a equívocos inadmissíveis. Talvez resida aí parte da responsabilidade pela exclusão da dança do processo histórico-cultural da humanidade. No nosso país, de forma acentuada, em nações mais evoluídas, com muito menos rigor, podendo chegar a desempenhar o papel, politicamente fundamental, de integrar ou reintegrar nações, momentaneamente excluídas à comunidade internacional.

É normal confundir-se dançarino profissional com estudante de ballet. Banalmente ouve-se ou lê-se nos mais diversos meios sociais e veículos de comunicação, que tal ou qual pessoa foi “bailarino do Theatro Municipal do Rio de Janeiro”. Na realidade, a pessoa em questão foi somente aluna da Escola de Danças do referido teatro. Jamais atuou profissionalmente; inúmeras vezes sequer se formou. Afinal, trata-se de um longo curso, com duração de nove anos; nem todos os que por ali passaram tiveram vocação e talento para prosseguirem com uma carreira que envolve um grande despojamento e até certa dose de “atitude devocional”, na sua prática.

O aspecto transitório da dança, que a exclui da categoria das Belas Artes, facilita os argumentos de todos os que acusam a coreografia, isto é, a composição de movimentos que usa o próprio corpo humano como matéria-prima, de estar superada imediatamente após ser criada. Não sabem da capacidade de a dança, justamente por seu processo intrínseco e dinâmico de evolução, manter-se permanentemente atual, ajustando-se às novas concepções de estética através dos tempos, revelando, por isso mesmo, épocas, estados de espírito, sensações, e tudo o que de mais profundo exista por trás do executante. Porque a dança é a arte da verdade. O corpo não é um pincel, uma caneta, um som, uma cor; ele escapa do controle do bailarino e trai, revela sua alma; o movimento atinge e coloca a descoberto regiões que pareciam tão bem escondidas, tão protegidas pelas defesas desenvolvidas pela educação formal, pelo estudo racional do personagem e pela instrução, quando ela existe. Sim, é possível encontrar-se um bailarino de grande personalidade cênica, sem que isso envolva, necessariamente, qualquer erudição. De onde vem esse saber, esse domínio, essa compreensão maior da essência de obras, por vezes, tão complexas? É meio mediúnica, meio inexplicável essa intuição; sugere movimentos psicografados; não deveria, mas existe, e nos coloca de frente para o imponderável, ilógico, mágico, desconcertados, estáticos e extáticos diante da Arte por excelência, longe, e como, da ciência e da sua objetividade.

Por outro lado, tal e qual os cabanos, que venciam suas batalhas mas não possuíam estrutura intelectual e emocional para organizar de maneira lógica essas vitórias, fadados, portanto, a vencerem eternamente e perderem tudo de uma única vez, de fato, nunca nos preparamos, em nenhum dos aspectos, para assumir postos de liderança dentro da nossa própria profissão. Seguimos quixotescamente duelando contra moinhos, inexistentes e perseguindo ideais subjetivos, cada vez mais distantes dos papéis que deveriam ser ocupados por nossa insubstituível práxis, com algumas raras, lúcidas e brilhantíssimas exceções. Parei de dançar aos quarenta e oito anos. Dentro de minha cabeça de brasileira, bailarina, mulher, mãe, cidadã quando consigo exercer meu direito de cidadania, algumas reflexões haviam tomado corpo. Já percebia com mais clareza – sem a vaidade normal do performer, normal mas que inibe a visão da realidade e, sobretudo na dança, limita o sentido do coletivo – que precisávamos nos preparar para ocupar o enorme espaço que ela dança, oferece àqueles que a vivenciaram. Dei-me conta de que, em qualquer tempo, essa preparação seria viável, ainda que imprescindível. O impossível seria ter invertido essa ordem: teorizado na juventude e tentado transpor o poço da orquestra mais tarde. E quanto mais cedo adquiríssemos consciência de que precisávamos aliar conhecimento específico à cultura geral, mais legítima e incontestável seria a possibilidade de respondermos, em todos os níveis, pela nossa própria opção profissional.

Por natureza, sempre fui curiosa e apaixonada por história, em geral. Igualmente, o ambiente familiar, na qual fui educada desde a infância, me predispôs para aprender, assistir, respeitar e amar a Arte e para ver na cultura, erudita ou popular, indistintamente, o bem de maior valor de uma nação.

Assim, foi com naturalidade que me vi, um dia, diante de uma nova platéia formada por jovens e inquietos estudantes de um curso de licenciatura em dança: o do Centro Universitário da Cidade. Foi ali trocando idéias, refletindo com eles sobre a trajetória da dança, no mundo e no Brasil, que acabei escrevendo um livro. Este livro.

Tenho convicção de que minha maior credencial reside nos mais de trinta anos em que atuei no palco, mais da metade deles no Theatro Municipal do Rio, no permanente aprendizado que me proporcionam a juventude investigativa de meus alunos e de meu próprio filho e o profundo amor que nutro pela profissão que abracei, amor que determinou até minha vida pessoal.

Casei-me com um bailarino. Vivo entre os artistas da cena. Não sou nem pretendo ter a erudição de um filósofo pensador mas acredito que possa colaborar na condição de pedagoga mas, principalmente, na bailarina, de alguém que viveu o outro lado, o lado de dentro da dança, para o conhecimento de sua história e de sua evolução, sinalizando, simultaneamente, para um novo caminho a ser percorrido por aqueles que, como eu, amaram-na e conheceram-na, a partir de todas as suas faces. Nesse caminho deverá ter lugar, inquestionavelmente, a dimensão institucional que nos é devida.

 CAMINADA, Eliana. Reflexões Dança. Sprint Magazine, Cidade, v.99, n.104, p.26-27, set/out 1999. Disponível em: <Biblioteca Central UNIVILLE>. Acesso em: 18 set. 2003.

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